Vamos precisar mudar tudo

Para tentar retomar algum sentido na vida e na história, vamos ter que cortar na carne. Não vai ser bonito, nem bacana.

Rodrigo Teixeira
5 min readJan 22, 2021
Photo by NASA on Unsplash

Parece que foi há mil anos, mas eu estava lá.

Quando a internet passou a ser uma coisa mais ou menos usual na vida da gente, era normal pararmos durante uma hora na frente do micro (lembrem-se: não existia celular) e tentar descobrir o que fazer ali. E não passava muito de uma hora, porque a conta vinha cara depois. Bem cara.

Era muito pouco site pra muita curiosidade. Por falta do que fazer, a gente via qualquer coisa. Site de montadora de automóvel, site de desenvolvedor de site, site de sabonete. Nem pornografia tinha direito, tínhamos que apelar para algum fórum em uma BBS.

Nem dava pra realmente entender o que estava sendo gestado ali. Mas uma coisa que ficava clara é que o caos daquele espaço era o que ele tinha de mais valioso. Analisando agora, nós, os primeiros habitantes do cyberespaço funcionamos como uma espécie de fermento biológico do experimento.

E, bem… o bagulho cresceu.

Em pouco tempo, checar diariamente e-mail passou a ser obrigatório. Pessoas reclamavam do tempo que passavam abrindo e respondendo suas correspondências. Power Points com figuras de paisagens, fotos de gatos, religão e putaria começaram a chegar nas nossas caixas postais. Fóruns digitais nos fizeram interagir com dezenas de pessoas ao mesmo tempo. Salas de chat eram até cobradas, pela oportunidade suprema de conversar com gente que você não sabia quem era. Pessoas pagavam pelo acesso em sites que prometiam videos vazados de celebridades.

De verdade, eu realmente me lembro. A rede era chamada de "a grande aldeia global". Como se o simples ato de se conectar através de um discador barulhento com uma foto de cachorrinho branco imediatamente nos colocasse mais próximos de um futuro tipo Jornada nas Estrelas, quiçá falando uma única e nova língua mundial. Era lindo.

Daí as torres caíram. Pouco depois, surgem Orkut, Facebook e Twitter.

E deu no que deu.

A vocação anárquica da internet nos move. A possibilidade de se expressar de forma completamente livre é sedutora. Poder se reconectar com parentes, antigos amigos, acompanhar suas vidas, ver as fotos da última viagem, do filho, do gato, do prato de comida japonesa no início era lindo, ainda que sempre envolto numa nuvem de inveja, pequenas manipulações e bastante mentiras pouco ofensivas.

Para grupos em busca de identidade, eu creio que internet foi primordial. Posso falar pelo meu grupo: os nerds. Eles, que eram tão chutados para fora de qualquer grupo social, de repente descobriram que eram muitos, num lugar em que eram aceitos, seus conhecimentos inúteis invejados, e podiam gerar tanta grana que ajudaram a levantar um império bilionário chamado Marvel nos cinemas. Imagino que para outras minorias, deve ter sido o mesmo.

E ok, não precisamos apagar nada disso. É parte da história, os ganhos estão aí. Mas precisamos, de uma vez por todas, reconhecer:

A forma que a internet se popularizou está causando muito mais mal do que bem. E ela tem a capacidade de destruir tudo que foi construído.

Não é fácil, mas em muito pouco tempo precisaremos de fazer uma verdadeira Escolha de Sofia. Ou mantemos nossa liberdade de tocar o puteiro ou encaramos o fato de que novos Jaíres, Donalds e grupos extremistas invadindo Congressos pelo mundo serão parte da rotina.

Fomos subjulgados por uma inteligência artificial. Os algoritmos aprenderam a nos domar. Somos cãezinhos de Pavlov salivando a cada sininho de treta que balançam em nossa direção.

E precisamos ser mais realistas do que fomos até aqui. Largados à própria sorte, somos como qualquer adicto que diz que não vai mais usar a droga porque tem força de vontade. Para mudar esse cenário, vamos precisar de restrições. E essas restrições devem deixar nossa internet menos divertida.

Eu sinto isso a cada mensagem recebida pelo WhatsApp com alguma teoria mirabolante que geralmente é negacionista, preconceituosa ou idiota, ou tudo junto, compartilhada geralmente por alguma pessoa sem muito senso de valor. Compartilhada porque gerou medo, ódio ou qualquer sentimento de baixa qualidade.

Mensagens como essa dificilmente foram escritas por alguém do público que as consomem. Muito provavelmente foram geradas em algum laboratório criador de pós verdades, utilizando técnica, método e com objetivos bem específicos. Essa mensagem(e qualquer outra do gênero) precisa ser rastreável. Precisamos saber de onde veio. Onde foi inicialmente gerada. E esse início precisar ter um nome, um rosto, um documento que responda por ela. E sim, eu sei que isso pode inibir uma gama de pessoas que usam o anonimato com boas intenções. É que essas pessoas, sinto dizer, estão perdendo jogo. E as apostas são muito altas.

As gigantes da internet ganham muito (muito mesmo) dinheiro com os algoritmos que criaram para nos manter entretidos. Alegam que não produzem conteúdo, são apenas tubos de ensaio para sua disseminação. Mas precisarão abrir mão deles, e deixar o alcance orgânico das postagens correr seu curso natural para que possam alegar que não tem participação neles.

Vão precisar mudar suas políticas de publicação, deixar de aceitar anti ciência, serem mais assertivas ao detectar racismo, sexismo, preconceito e agitação social maligna. Precisarão em investir em inteligência (artificial ou real) para serem mais céleres, e vão ter que ser menos gananciosas. Caso contrário, em 10 anos não haverá mais mercado.

Vai ser difícil, mas leis terão que ser criadas para mudar a forma que se capta informação dos usuários. Estamos descobrindo conexões que não sabemos explicar, e isso é perigoso. É como se eu de repente soubesse que pessoas que comem brigadeiro tem mais tendência de votar em liberais, mas não fizesse ideia do caminho entre uma coisa e outra. Se isso cai em mãos erradas (se é que já não caiu), dá acesso a ferramentas sofisticadas de controle social. E não, isso não é uma teoria da conspiração.

Mas enquanto continuarmos a brigar pelo nosso pedacinho de treta, enquanto não estivermos dispostos a abandonar parte dos nossos "direitos" nessa terra sem dono, estaremos relegados a um papel inédito na história. Se antes haviam os espectadores e os atores, seremos os usuários.

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Rodrigo Teixeira

Designer e desenhador. Apaixonado por filmes, séries, quadrinhos e livros. Sommelier de bolacha de maizena.